Em 1984, a TV Cultura de São Paulo produziu um episódio emblemático do programa “Câmera Aberta”, cujo tema era o rádio AM em São Paulo (grande São Paulo). Naquele período, o rádio AM ocupava um papel central na vida dos brasileiros, sendo mais influente e ouvido do que o rádio FM. O episódio documenta, ao longo de um dia inteiro, a programação das principais emissoras AM paulistanas, revelando a diversidade de conteúdos, estilos de comunicação e o forte vínculo emocional entre os ouvintes e seus locutores favoritos.
Com uma abordagem documental rica em imagens, vozes e depoimentos, o programa percorreu os bastidores das rádios, capturando o cotidiano de profissionais da comunicação e as reações dos ouvintes. Programas jornalísticos, religiosos, femininos, culturais, musicais, esportivos e de utilidade pública compõem o retrato vivo de uma era em que o rádio era, de fato, o principal elo entre a informação e o povo.
A Era de Ouro do Rádio AM em São Paulo
Durante as décadas de 1970 e 1980, o rádio AM viveu sua chamada “era de ouro” no Brasil. Em São Paulo, as ondas médias pulsavam com uma programação que cobria praticamente todos os aspectos da vida urbana. Com mais de 50 milhões de aparelhos de rádio em circulação no país, o meio era o principal veículo de comunicação de massa, especialmente para as camadas populares.
O rádio AM possuía alcance superior ao FM e apresentava uma grade de programação mais variada. Programas religiosos, como os de David Miranda, abriam o dia com mensagens de fé, enquanto atrações jornalísticas como “O Pulo do Gato“, da Rádio Bandeirantes, traziam notícias e prestação de serviços logo pela manhã. No campo policial, vozes como a de Afanásio Jazadji e Gil Gomes narravam crimes e mistérios com um estilo dramático que prendia a atenção do público.
Além disso, o rádio AM era o espaço privilegiado das mulheres, com programas voltados ao universo feminino, como os da Rádio Mulher. Havia também espaço para o amor e os relacionamentos, com quadros como “Aonde Anda Meu Amor”, de Antônio Celso, que misturavam romance e músicas selecionadas. O esporte, outro pilar da programação, reunia torcedores em transmissões acaloradas e debates entusiasmados.
A diversidade se estendia ao humor, à cultura e à ciência, com emissoras como Rádio Cultura e Eldorado oferecendo conteúdo erudito e educativo. Mas talvez a maior força do rádio AM estivesse em sua função assistencialista, com comunicadores como Eli Corrêa oferecendo consolo, ajuda e soluções para os problemas dos ouvintes. Era o rádio como extensão da casa, do trabalho, da vida.
As Rádios que Fizeram História no Dial Paulistano
Algumas das emissoras apresentadas no programa “Câmera Aberta” deixaram de existir ou mudaram radicalmente seu perfil, mas marcaram época. A Rádio Tupi, por exemplo, foi encerrada ainda em 1984, poucos meses após a exibição do programa. A Rádio Mulher, por sua vez, evoluiu para a atual Rádio Morada do Sol, que hoje transmite em FM estendido.
A Rádio Bandeirantes, uma das mais respeitadas da capital, era referência em jornalismo, com programas como o “Pulo do Gato”, apresentado por José Paulo de Andrade. Já a Jovem Pan, que se consolidava como um veículo combativo, misturava jornalismo e entretenimento.
Gil Gomes e Afanásio Jazadji, ícones do rádio policial, apresentavam seus programas com forte carga emocional e dramatização, um estilo que marcou gerações e foi precursor do que mais tarde se veria em programas de televisão.
Os programas femininos abordavam temas domésticos, saúde, comportamento e também empoderamento, ainda que de forma embrionária. Já os programas de relacionamento, como os de Antônio Celso, abriam espaço para as histórias de amor dos ouvintes, muitas vezes com desfechos trágicos ou emocionantes, e sempre embalados por trilhas sonoras cuidadosamente escolhidas.
No campo esportivo, a cobertura dos jogos e os debates eram acalorados e populares. Comentaristas como Fiori Gigliotti e Osmar Santos eram celebridades do microfone. E, por fim, as rádios culturais, como a Eldorado e a Cultura, ofereciam ao público uma programação diferenciada, com foco em música clássica, jazz, debates acadêmicos e programas educativos.
O Rádio AM Hoje: Mudanças, Declínio e Reinvenção
O cenário do rádio AM mudou radicalmente nas últimas décadas. O advento do rádio FM, com melhor qualidade sonora, e, posteriormente, a internet, provocaram uma migração significativa de audiência. O público jovem passou a consumir música e conteúdo em plataformas digitais, enquanto o rádio AM foi associado, cada vez mais, a um público mais velho e conservador.
A partir dos anos 2000, muitas emissoras AM fecharam ou migraram para o FM estendido, um processo incentivado pelo governo federal a partir de 2013. A Rádio Mulher, como citado, é um desses exemplos. Outras emissoras tradicionais mudaram sua programação ou foram arrendadas por igrejas e grupos religiosos, fenômeno comum no dial atual.
Apesar disso, o rádio AM ainda sobrevive em nichos específicos. Programas jornalísticos, debates políticos e religiosos seguem encontrando público fiel, principalmente em cidades do interior. Além disso, com a digitalização do rádio e o avanço do streaming, muitas rádios AM passaram a operar também na internet, criando uma ponte entre tradição e modernidade.
Iniciativas de preservação da memória radiofônica, como canais no YouTube e projetos de digitalização de acervos, têm ajudado a manter viva a história do rádio AM. O episódio de “Câmera Aberta” é um desses registros valiosos que ajudam a compreender a relevância do rádio na cultura brasileira.
Para assistir, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=njftY6kJLMw
Professor universitário desde 2005, é Mestre em Comunicação e Especialista em Criação Visual e Multimídia. Trabalhou em importantes faculdades e colégios técnicos de São Paulo e Santo André. Radialista de formação, teve passagem por emissoras de TV e Produtoras de TV e Internet. Durante quase 10 anos, coordenou o curso de Rádio, TV e Internet FAPCOM. Também coordenou os cursos de Produção Audiovisual e Fotografia (durante 4 anos) e de Multimídia (durante 2 anos) da mesma instituição. Antes, coordenou o curso técnico em Multimídia do Liceu de Artes e Ofícios (2009-2010). Atualmente é diretor-executivo da TeleObjetiva e professor da FAPCOM.