A história da televisão brasileira é marcada por momentos inovadores que transformaram a maneira como o público interage com conteúdos audiovisuais. Desde suas primeiras transmissões, a TV brasileira buscou formas de estreitar a relação entre as emissoras e o telespectador. Entre as estratégias para isso, surgiram os programas interativos, que permitiram ao público participar ativamente do conteúdo exibido, transformando a TV de um meio unidirecional em uma plataforma de interação.
Neste artigo, exploraremos alguns dos marcos dessa jornada interativa na TV brasileira, com destaque para o programa TV Powww! (SBT – 1984 a 1986 e 1989), Hugo (TV Gazeta/CNT – 1995 e 1998), Você Decide (1992 a 2000) e Intercine (1996 a 2010) – esses últimos produzidos pela Rede Globo. Cada um deles trouxe inovações que marcaram a história da interatividade na televisão, seja ao permitir a participação em tempo real, seja dando ao público o poder de decidir os rumos de uma história.
O primeiro programa interativo? TV Powww! e a Magia do Controle Remoto
O programa TV Powww! foi exibido no Brasil pelo SBT entre 1984 e 1986, com um breve retorno em 1989. O programa é considerado o primeiro programa interativo da televisão brasileira, pois, baseado em um formato americano, inovou ao utilizar uma tecnologia que permitia ao espectador que telefonasse ao programa, controlar o jogo exibido na tela por meio de comandos de voz ao telefone. Durante o programa, crianças ligavam para o estúdio e participavam de uma espécie de game show, onde gritavam “Pow!” (ou “pau”, dava na mesma) para atirar em alvos animados que apareciam na tela. O sucesso do jogo dependia tanto da habilidade do participante quanto da precisão do tempo de resposta do comando.
A tecnologia por trás do programa era bastante simples, mas efetiva para o período. O jogo em si era operado no estúdio por um produtor que reagia ao comando de voz do participante no telefone, pressionando o botão do joystick. Essa mecânica deu aos telespectadores a ilusão de controlar o jogo diretamente, oferecendo uma experiência imersiva e completamente nova para a época. Mesmo que o controle não fosse realmente remoto, e sim operado manualmente pelo operador da produção, a sensação de participação do público foi algo marcante e inédito na TV brasileira.
TV Powww! foi revolucionário justamente por trazer um novo tipo de interação entre o público e a TV. Essa participação era limitada ao público infantil, mas a inovação foi bem recebida e marcou o início de uma era na qual a televisão começava a explorar novas maneiras de aproximar o telespectador do conteúdo exibido.
TV Powww! - SBT - 1984 a 1984 e 1989.
Hugo: A Interação em Tempo Real Evolui
Em 1995 a Rede CNT/Gazeta lançou o programa Hugo, que levava a interação para um novo patamar. Inspirado em um formato dinamarquês, o programa era um jogo interativo protagonizado por um simpático personagem animado chamado Hugo, um duende que se envolvia em diferentes aventuras na tela. Para ajudar Hugo a superar obstáculos e coletar pontos, os participantes usavam os botões de seus telefones fixos, cujos tons de discagem ativavam os comandos no jogo.
O grande diferencial de Hugo em relação ao TV Powww! era a precisão dos comandos. Utilizando a tecnologia DTMF (Dual-Tone Multi-Frequency), os jogadores conseguiam controlar efetivamente o personagem em tempo real com o toque no teclado do telefone. Isso permitia uma interatividade mais direta, na qual o participante influenciava realmente os movimentos do personagem na tela.
Hugo foi um sucesso de audiência e marcou uma geração de telespectadores brasileiros. Além de entreter, o programa destacava-se pelo apelo visual e pela sensação de controle imediato que proporcionava. No entanto, como era comum na época, o programa também enfrentava desafios tecnológicos, como o atraso na resposta entre o comando do jogador e o movimento de Hugo. Ainda assim, Hugo se consolidou como uma experiência pioneira em termos de interatividade e fez história como um dos programas mais lembrados dos anos 1990. O programa teve duas passagens pela tela da CNT/Gazeta: a primeira temporada foi realizada em 1995; a segunda, em 1998.
Programa Hugo - CNT/Gazeta - 1995
Você Decide: O público como roteirista.
A Rede Globo lançou em 1992 um programa que levaria o conceito de interatividade a um novo nível: Você Decide. Com uma proposta inovadora para a época, o programa apresentava semanalmente uma dramatização com temas variados, geralmente envolvendo dilemas morais ou questões polêmicas. No final de cada episódio, o público tinha a chance de decidir o desfecho da história votando por telefone em duas opções de final. Essa votação ao vivo era computada em tempo real, e o final mais votado era exibido logo em seguida.
Você Decide não apenas convidava o telespectador a interagir, mas também o envolvia emocionalmente ao permitir que ele influenciasse diretamente o rumo de uma história. Cada episódio era construído para gerar engajamento e reflexão, e o programa teve sucesso em criar uma atmosfera onde o público se tornava parte do processo criativo. Esse formato, que misturava drama e interatividade, era inédito na TV aberta brasileira e representava um avanço significativo na forma de engajamento da audiência.
Você Decide - em nome do filho - 08/04/1992
O programa se tornou um marco ao mostrar que a interatividade poderia ser usada não apenas para entretenimento puro, mas também para promover debates sociais e morais. Você Decide era um programa que refletia as aspirações e dilemas da sociedade brasileira, dando ao público uma voz na narrativa. Isso o consolidou como um dos programas mais lembrados dos anos 1990 e um exemplo de como a interatividade poderia ser aplicada de maneira inovadora e significativa na televisão. Em 1997, o programa sofreu uma modificação e passou a permitir a escolha do final da história dentre 3 opções disponíveis.
Você Decide: A vizinha - 03 de abril de 1997
Intercine: O controle da programação nas mãos do público
Em 1996, a Globo introduziu o Intercine, um programa de exibição de filmes onde o público tinha a oportunidade de escolher qual dos dois filmes pré-selecionados iria ao ar na programação da madrugada. A votação era realizada por meio de ligações telefônicas, e o filme mais votado era exibido na mesma noite. Diferentemente de Você Decide, onde a escolha do público determinava o final de uma história, Intercine oferecia ao espectador o controle sobre o conteúdo que seria exibido.
Chamada Intercine - Rede Globo - 2009
Embora a premissa fosse simples, Intercine representava uma forma de participação ativa do público na grade de programação de uma grande emissora. Esse modelo de interação com a audiência também permitia à Globo ajustar a programação conforme as preferências do público, um conceito que, embora limitado pela tecnologia da época, se aproximava das ideias de personalização que hoje são comuns em plataformas de streaming.
O programa permaneceu na grade da Globo entre 1996 e 2010.
Outros programas interativos:
Quando se fala de produções interativas, uma questão que precisa ser definida é: qual tipo de interatividade estamos falando?
Programas como TV Powww! e Hugo foram interativos pelo viés tecnológico: permitiram ao público (na verdade, uma pessoa por vez) a participar do programa e influenciar o rumo do “personagem”.
Apesar de mais famosos, não foram os únicos programas com esse perfil. Utilizando a mesma tecnologia do programa Hugo, e trazido ao Brasil pela mesma empresa (vinculada ao estúdio de dublagem “Herbert Richers”) que trouxe o formato veiculado na CNT/Gazeta, a MTV Brasil veiculou entre 1997 e 1998 o programa “Garganta e Torcicolo”, apresentado por João Gordo.
Garganta e Torcicolo - MTV Brasil - 1997.
O “Você Decide” e o “Intercine” foram mais democráticos ao permitirem que a opinião da maior parte do público fosse decisiva para o destino do personagem. Por trás destes programas estava uma empresa de tecnologia que implantou e é dona da RedeTV!. Inclusive, a RedeTV! contava com programas interativos em seu início.
Chamadas de estreia da RedeTV! - Novembro de 1999.
Mas e os programas que abriam espaço para o público conversar com o apresentador, seja por telefone, carta, fax ou e-mail, também podem ser considerados interativos (alguns, em partes). Dentre outros, destaco o Teleguiado, da MTV Brasil (produzido entre 1995 a 1999), e o Cadeia, da CNT, apresentado por Luiz Carlos Alborghetti e outros (Ratinho apresentou o programa entre 1994 e 1997), programa que, entre uma matéria e outra, abria espaço para a leitura dos fax enviados pela audiência.
Programa Teleguiado - MTV Brasil - 1999
Programa Cadeia - Rede CNT - 1999
O Legado dos Primeiros Programas Interativos
Cada um desses programas trouxe contribuições importantes para a evolução da interatividade na televisão brasileira. Desde o TV Powww!, que encantava as crianças com seu controle “mágico”, até Hugo, que introduziu comandos diretos pelo telefone, passando por Você Decide, que colocava o público no papel de roteirista, e Intercine, que democratizava a escolha de filmes, esses programas pavimentaram o caminho para novas experiências interativas.
Hoje, o conceito de interatividade se tornou mais sofisticado e diversificado, mas a essência permanece: permitir que o público participe, opine e sinta que tem um papel ativo no conteúdo que consome. Esses programas foram, cada um a seu modo, visionários ao buscar uma maior aproximação com a audiência, transformando o telespectador em parte integrante do espetáculo televisivo.
A televisão brasileira deve muito a essas iniciativas pioneiras, que, com criatividade e ousadia, demonstraram o potencial da interatividade em um meio até então predominantemente unidirecional (do canal televisivo ao público). A partir desses primeiros passos, a TV brasileira se consolidou como um campo fértil para a inovação, inspirando novas formas de engajamento e ampliando as possibilidades de comunicação entre a tela e o público.
Professor universitário desde 2005, é mestre em comunicação e especialista em criação visual e multimídia. Trabalhou em importantes faculdades e colégios técnicos de São Paulo e Santo André. Radialista de formação, teve passagem por emissoras de TV e Produtoras de TV e Internet. Atualmente dirige a TeleObjetiva e coordena os cursos de Rádio, TV e Internet; Produção Audiovisual e Fotografia da FAPCOM, além da comissão própria de avaliação (CPA) da instituição.